No centro de saúde de Pedreiras (MA), a funcionária Conceição Benigno exibe dentes extraídos. Segundo os números informados pela prefeitura, eis aí a cidade mais banguela do Brasil CRÉDITO: EGBERTO NOGUEIRA_ÍMÃ FOTOGALERIA_2022
Farra ilimitada
Depois dos tratores e das escolas fakes, o orçamento secreto patrocina um festival de fraudes no SUS
Breno Pires | Edição 190, Julho 2022
No seu casebre de pau a pique, Rosimar Conceição da Silva, de 51 anos, está recostada numa cadeira, com o Sol entrando pelas frestas e se esparramando entre o chão de terra e a taipa. Desconectada da vida lá fora, ela descreve seu sonho. “O que nós queríamos aqui, assim, era um doutor muito bom, mesmo, para cuidar bem da gente. Principalmente esse negócio de osso.” Seu marido, Francisco dos Ramos, dois anos mais velho, quebrou as duas clavículas há oito meses e ainda geme de dor. “Nós queríamos um doutor que fizesse o exame dele, de botar ele naquelas máquinas, assim, de bater o exame dele completo. Isso que era o meu sonho, de fazer isso com ele, para descobrir o que ele tem.”
Naquela tarde de um domingo de junho, no município de Bela Vista do Maranhão, Francisco dos Ramos conta que levou um tombo da carroça e foi arrastado no asfalto pelo burro. “E aí, senhor, ele me deu francamente uns cinco coices nas costelas. Estou todo inflamado por dentro. Dia eu como bem, dia eu como mal, porque dói por dentro. Até a água dentro de mim dói.” Rosimar da Silva, quando precisou de médico por problema nos pulmões, teve que recorrer a uma consulta particular. “Minha menina se agoniou e aí ela fez um empréstimo. Eu fiz os exames todinhos em Santa Inês, aqui pertinho. Tudo foi uns 700 ou 800 reais, né?” A menina é Elisângela Silva, sua filha de 24 anos, mãe de três filhos.
O desamparo da família não é uma exceção no interior do Maranhão, o estado mais pobre do Brasil, mas um dado chama a atenção. No ano passado, Bela Vista recebeu 5,5 milhões de reais em verbas de emendas parlamentares para pagar exames e consultas com profissionais especializados, gastos que fazem parte da chamada atenção de “média e alta complexidade” – ou MAC, no jargão da saúde. É bastante dinheiro. É mais do que receberam as secretarias de saúde de onze capitais, entre elas Florianópolis, Natal, Vitória, Belém e Manaus. Considerando que Bela Vista tem apenas 11,3 mil habitantes, os 5,5 milhões resultam numa média de 490 reais per capita – quantia muito superior à média nacional, de 20 reais por habitante.
Há dois meses, a piauí começou a investigar o caso de Bela Vista para entender por que a cidade recebia tanto dinheiro e o sistema de saúde não apresentava melhora significativa. Examinando as planilhas com os valores destinados à cidade pelo Orçamento da União, a revista identificou que Bela Vista, mais uma vez, não é uma exceção. Outras cidades receberam verbas per capita até mais altas no ano passado. No município de Afonso Cunha, por exemplo, o valor per capita passou de 520 reais. Igarapé Grande levou a medalha de ouro: 590 reais por habitante. Nenhuma outra cidade do Brasil, entre capitais ou interior, conseguiu tanto dinheiro per capita.
Numa coincidência rara, todas essas cidades com altos valores per capita ficam no Maranhão, estado que concentra pouco mais de 3% da população brasileira. Dos 10 municípios recordistas, 9 são maranhenses – o estranho no ninho é Barretos, em São Paulo, onde parte do dinheiro vai para o Hospital de Amor, o antigo Hospital de Câncer, uma das instituições filantrópicas mais conhecidas do país. Entre as 30 cidades brasileiras mais bem aquinhoadas por habitante, o Maranhão emplaca 23. Mais notável ainda é que a fatia do Maranhão nas verbas de saúde vem crescendo em ritmo acelerado. Em 2020, o estado ficou em sétimo lugar no ranking nacional. No ano passado, subiu para a quinta posição, atrás apenas de estados maiores: Minas Gerais, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro. Agora, contabilizadas as liberações feitas até o mês de junho, o Maranhão está no topo.
Em 2015, mediante uma mudança na Constituição que tornou obrigatório o pagamento das emendas orçamentárias individuais, os deputados e senadores passaram a ter o direito de mandar verbas da saúde para os municípios de sua escolha, mas com um limite: o valor das remessas não pode ser superior à quantia que o município informou ter gastado no ano anterior. Como então os parlamentares fazem emendas tão polpudas para cidades maranhenses? Conferindo os dados do Departamento de Informática do SUS (DataSUS), a piauí identificou que os municípios estão informando que seus gastos tiveram um salto de um ano para o outro, o que eleva o teto do que podem receber no ano seguinte. Em 2019, São Raimundo das Mangabeiras, que fica na parte Sul do Maranhão, tinha um faturamento de 213,6 mil reais em assistência ambulatorial. No ano seguinte, incluindo gastos hospitalares, o teto subiu para 4 milhões. São Bernardo, situada na divisa com o Piauí, pulou de 720 mil reais para 4,2 milhões. Santa Quitéria do Maranhão tinha um limite de 280 mil reais, que, no ano seguinte, disparou para 4,6 milhões. “Aumentos assim, de dez a vinte vezes em apenas um ano, é algo que nunca vi”, espanta-se Maria Angélica Borges dos Santos, professora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. Ela explica que quedas abruptas até acontecem, quando quebra um aparelho, por exemplo. Mas saltos assim, não.
Cruzando dados dos relatórios de atendimentos médicos no SUS, a piauí encontrou a explicação para a disparada dos tetos: as prefeituras estão apresentando números fictícios de serviços de saúde. Santa Quitéria do Maranhão, por exemplo, parece ter se tornado uma incrível máquina de consultas, testes de sangue, exames de fígado e – recorde nacional – testes de HIV. Os números que a prefeitura informou ao SUS:
*96,8 mil atendimentos de urgência por médicos especializados em 2020, o que equivale a quase quatro atendimentos por habitante, um padrão nórdico. Em 2019, um ano antes, o número de atendimentos especializados foi zero.
*45,2 mil consultas médicas – um ano antes, nenhuma.
*49 mil dosagens de colesterol (quase duas por habitante) e 52,8 mil exames para identificar lesões no fígado (mais de dois por habitante).
*59,8 mil eritrogramas (um tipo de exame de sangue) que Santa Quitéria do Maranhão nunca fizera antes, nem voltou a fazer no ano seguinte. Apenas três cidades brasileiras fizeram mais eritrogramas que Santa Quitéria.
E, por fim, o dado mais espantoso:
*3 101 exames Western Blot, usados para confirmar diagnósticos de infecção pelo vírus HIV. Com seus 25,8 mil habitantes, Santa Quitéria do Maranhão conseguiu bater a cidade de São Paulo, que, com 12,4 milhões de habitantes, realizou 2 976 testes do tipo.
A análise dos relatórios de atendimentos enviados ao SUS mostra que as cidades do Maranhão dobraram seus números entre 2018 e o ano passado. É o único estado em que isso aconteceu. Com dados tão inflados, as cidades do Maranhão, sozinhas, estão recebendo mais recursos para a saúde do que o destinado a outras unidades da federação. Bacabal, por exemplo, com seus 105 mil habitantes, ficou com 13 milhões de reais no ano passado, superando os 12,8 milhões de reais destinados ao Distrito Federal, cuja população passa de 3 milhões de pessoas.
Pela geografia financeira e política, o esquema é uma conexão direta entre Brasília e as cidades do interior do Maranhão. No nível municipal, montou-se uma máquina de exames e consultas fantasmas, listando serviços de saúde que as prefeituras, na verdade, jamais prestaram. No nível federal, abastecendo o esquema com milhões de reais, está o orçamento secreto, aquele instrumento que o governo de Jair Bolsonaro criou para comprar o apoio no Congresso, principalmente dos integrantes do Centrão, o núcleo mais fisiológico do Parlamento. Desde que sua existência foi revelada pelo jornal O Estado de S. Paulo, em maio do ano passado, o orçamento secreto já apareceu no escândalo das máquinas agrícolas e tratores superfaturados. Depois, estrelou os desvios no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que levaram à prisão do ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro, e de dois pastores envolvidos. Todos foram soltos no dia seguinte.
Agora, o novo escândalo do orçamento secreto é na área da saúde. Em maio passado, o jornal O Globo começou a tratar do assunto em uma reportagem na qual mostrou que o governo Bolsonaro havia entregado o controle das verbas da saúde para os aliados no Congresso, que, por sua vez, vinham turbinando os recursos do Fundo Nacional de Saúde via orçamento secreto. De 2019 a 2021, informou o jornal, as verbas do FNS cresceram 112% e o grosso do dinheiro é destinado para os redutos eleitorais de caciques do Centrão. O que não se sabia é que há um outro fluxo das verbas que percorre um notável circuito de fraudes: as prefeituras falsificam informações ao SUS para inflar seu teto orçamentário, os parlamentares mandam verbas no volume inflado e o município recebe uma bolada – mas não termina aí.
Uma parte das verbas – que em alguns casos pode chegar a até 30% do total dos recursos enviados à prefeitura – vira o que os corretores de propina em atividade no Congresso Nacional chamam de “volta”. A “volta” é a quantia de dinheiro que a prefeitura devolve ao parlamentar que assinou a emenda beneficiando o município. É uma propina paga com verba da saúde. “Ninguém fala porque é preciso ter provas concretas, mas a ‘volta’ é voz corrente no Congresso”, diz um deputado, que já ocupou altos postos de comando na Câmara. Às vezes, a “volta” faz parte do acordo desde o início. Outras vezes, a cobrança chega sem aviso prévio, na base da extorsão. O deputado federal Josimar Maranhãozinho (PL-MA) é investigado pela Polícia Federal pelo uso de grupos armados na hora de extorquir prefeitos.
A existência da “volta” explica por que há parlamentares que gostam tanto do orçamento secreto, pois a identidade do autor da emenda não é divulgada. É um plano engenhoso, que oferece recursos à farta e anonimato garantido. A piauí procurou todos os dezoito deputados, os três senadores do Maranhão e cinco ex-
parlamentares que, em algum momento, exerceram mandato nesta legislatura, para perguntar quanto cada um mandou de verbas ao estado por meio do orçamento secreto. Dos 26 acionados, 21 não quiseram informar os dados ou não deram retorno. Dois – os deputados Bira do Pindaré (PSB) e Márcio Jerry (PCdoB) – informaram que não enviaram nenhum recurso. Os outros três – André Fufuca (PP), Hildo Rocha (MDB) e Rubens Pereira Júnior (PT) – disseram ter feito emendas no valor de 30,7 milhões, 13,2 milhões e 8 milhões, respectivamente. Como até agora o Maranhão já atraiu 918 milhões de reais somando-se todos os pagamentos do orçamento secreto na saúde desde 2020, fica faltando explicar a autoria de 866 milhões de reais.
No plano municipal, tudo começou em Igarapé Grande, uma pacata cidade de 11,5 mil habitantes na região central do Maranhão, situada a 300 km de São Luís. Em 2018, os atendimentos MAC na cidade estavam em 123 mil. No ano seguinte, quando o orçamento secreto dava seus primeiríssimos passos em Brasília, explodiram para 761 mil. Só as consultas com especialistas bateram em 385 mil, o que dá uma média de 34 consultas por habitante, um padrão que supera o recorde mundial, estabelecido pela Coreia do Sul, onde a média anual chega a 17 consultas por habitante. Com a profusão de exames e consultas-fantasmas, Igarapé Grande aumentou muito seu teto orçamentário e conseguiu atrair 3,9 milhões de reais do orçamento secreto em 2020. Nesse mesmo ano, voltou a inflar seus números. Chegou a informar que fez mais de 12,7 mil radiografias de dedo de mão – ficando atrás apenas de São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte. Assim, em 2021, conseguiu ainda mais recursos do orçamento secreto: 6,7 milhões, o que lhe valeu a medalha de ouro no per capita nacional.
O sucesso de Igarapé Grande logo contagiou a vizinha Bernardo do Mearim. Na eleição municipal de novembro de 2020, os bernardenses elegeram Arlindo de Moura Júnior Xavier (PDT) para prefeito. Ele é irmão de Erlanio Xavier, o prefeito de Igarapé Grande, e Bernardo do Mearim aderiu ao esquema de imediato. De janeiro a outubro de 2020, a prefeitura registrara 2 240 consultas especializadas. Nos dois últimos meses do ano, porém, já com Júnior Xavier eleito, as consultas dispararam para 235,6 mil, atingindo uma média exorbitante de 39 consultas por habitante no ano. Com isso, a prefeitura ampliou seu teto de gastos para 3 milhões de reais e, no ano seguinte, recebeu o teto. A parte mais significativa – 2,5 milhões – veio do orçamento secreto. “Hoje nós temos ginecologista, mastologista, ortopedista, pediatra, fisioterapeuta, assistente social, fonoaudiólogo. Nós temos otorrino. Nós temos em torno de umas dezessete especialidades”, disse o secretário da Saúde, Francisco da Conceição Moraes, de 46 anos, na tarde de uma quinta-feira de junho. No mesmo dia, a piauí visitou o hospital municipal. Encontrou apenas um clínico geral. Por volta das 17 horas, a revista se preparava para visitar a Unidade Básica de Saúde quando foi informada de que as atividades já haviam sido encerradas.
Com o exemplo de Igarapé Grande e Bernardo do Mearim, outras cidades maranhenses tomaram o mesmo caminho. De 2018 para 2019, Bom Lugar, que nem tem hospital, aumentou em 1.300% seus procedimentos de alta e média complexidade. Paulo Ramos também registrou aumento de 1.300%. De 2019 para 2020, a cidade de Luís Domingues saltou 39.000%. No município de Governador Luiz Rocha, foram 12.500%. Considerando o período que vai de 2019 a 2021, o esquema virou uma epidemia. Nesse período, 66 cidades maranhenses registraram, pelo menos uma vez, um aumento anual de 500% ou mais no número de procedimentos MAC. Trinta delas aumentaram mais de 1.000%.
A conexão entre Brasília e as prefeituras maranhenses opera com eficiência quase automática: no momento em que o novo limite sobe, o total das remessas sobe junto. Bacuri, 18,7 mil habitantes, inflou seus gastos de 394 mil reais para 7,5 milhões no ano passado. Registrou tantas consultas com especialistas – 954 mil no total – que cada habitante teve direito a uma consulta por semana. O fato é que o superfaturamento de dados em 2021 já rendeu seu prêmio nas liberações do orçamento secreto feitas em junho: caíram 7 milhões de reais na conta da Prefeitura de Bacuri.
Em alguns casos, a conexão se dá por laços sanguíneos – e com a mesma eficiência. A Prefeitura de Miranda do Norte registrou um aumento excepcional de atendimentos (de 95 mil para 1,1 milhão) em 2021 e elevou seu teto (de 1,1 milhão de reais para 10 milhões) para o ano seguinte. Na leva de liberações ocorridas em junho, a prefeitura gabaritou: recebeu 10 milhões de reais, acertando na mosca o novo limite. De certo modo, foi uma operação doméstica. Angélica (PL), prefeita de Miranda do Norte, é mãe do deputado federal Junior Lourenço (PL-MA), que, por sua vez, é um dos autores das emendas que chegaram aos 10 milhões.
O festival de verbas criou situações esdrúxulas. Pedreiras, que fica a cinco horas de São Luís e tem 39 mil habitantes, informou que, no decorrer de 2021, realizou 540,6 mil exodontias, o nome técnico da extração dentária. Para chegar a tanto, Pedreiras teria que ter arrancado catorze dentes de cada morador. É quatro vezes mais exodontias do que fez toda a cidade de São Paulo. A roda não para: nos primeiros quatro meses deste ano, já foram mais 220,4 mil extrações – o que, feitas as contas, dá dezenove dentes extraídos por habitante, mais ou menos a metade da arcada dentária de todos os moradores. A prefeita Vanessa Maia (Solidariedade) é enfermeira de formação, usa aparelho dentário, tem um sorriso largo e, aparentemente, é uma exceção municipal: possui todos os dentes. Procurada para explicar por que administra a cidade mais banguela do país, a prefeita não respondeu as ligações da piauí.
Na tarde de uma quinta-feira de junho, a reportagem encontrou a dentista Jaurilene Xavier, que atende num centro de saúde, e lhe perguntou sobre a incidência de extrações dentárias na cidade. “Antigamente, tinha mais procura por exodontia, mas agora não está tendo muito. São duas consultas, às vezes nenhuma por dia. É assim”, disse ela, sem ser informada dos números que a cidade apresentou ao SUS. A funcionária Conceição Benigno, que trabalha no posto, exibe uma bandeja com dentes extraídos – poucos, se comparados aos números da prefeitura. Em seu gabinete, o coordenador de Saúde Bucal de Pedreiras, Michel Sousa, contou que há vinte equipes de dentistas atuando na cidade e nos postos de saúde na zona rural, além de seis dentistas no Centro de Especialidades Odontológicas. Mas Sousa estimou que a média de extrações dentárias é de duzentas por mês. Pelos números inflados de Pedreiras, só nos quatro meses deste ano a média já bateu em 55 mil extrações mensais.
No dia 24 de março, o deputado federal Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, foi o convidado de honra em um encontro organizado pela Federação dos Municípios do Estado do Maranhão (Famem), em São Luís. Entre os prefeitos, estava Erlanio Xavier (PDT), de Igarapé Grande, a pioneira em arrochar o orçamento secreto. Xavier comanda a Famem. Também estava Vanessa Maia, a prefeita da cidade banguela. Outro que compareceu foi Luciano Genésio (PP), prefeito de Pinheiro, que dois meses antes fora alvo de uma operação da Polícia Federal por desvio de verbas do SUS. (Os agentes investigam uma licitação de 38 milhões de reais em que a prefeitura contratou duas empresas – o Posto Kiefer e a Ingeo Ambiental – suspeitas de pertencer ao próprio prefeito e seu irmão, Lúcio André.)
A festa para receber Lira também contou com a presença de parlamentares que dão expediente em Brasília. Entre eles, estavam os senadores Roberto Rocha (PTB-MA) e Weverton Rocha (PDT-MA), um político bastante influente no circuito das prefeituras dos dados-fantasmas. Outro que estava presente é o deputado Juscelino Filho (União-MA), um parlamentar tão próximo de Lira que ganhou o cargo de relator do orçamento de 2021. Na ocasião, a prefeita Vanessa Maia, a da cidade banguela, entregou a Lira um compilado das demandas do seu município, pedindo mais verbas. Mas o momento mais aguardado foi o discurso do presidente da Câmara.
Em sua fala, Lira disse mais ou menos o que todo político poderoso diz aos aliados, mas, quando se sabe o que as cidades maranhenses andam aprontando, suas palavras soaram esclarecedoras. “Essa reunião aqui vai acontecer justamente para que a gente possa discutir um pouco com os prefeitos do Maranhão, para fazer essa interface que o Weverton sempre faz, que a gente tem que estar sempre se comunicando, sempre tem que estar aberto ao diálogo, sempre tem que estar sensível às pautas e saber medir as ações, para que a Casa de Leis que é o Congresso Nacional, tanto o Senado como a Câmara, possam acertar mais do que errar, contribuir mais do que atrapalhar”, disse. Mas contribuir com o quê? Lira respondeu: “Para que os prefeitos tenham mais capacidade de investimento na saúde, na educação, em todas as áreas estruturantes que a população mais carente sempre precisa.”
Um mês antes, o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que controla 5,5 bilhões de reais do Senado no orçamento secreto neste ano, teve um compromisso semelhante, em Imperatriz do Maranhão, a segunda maior cidade do estado. Estavam presentes o senador Weverton Rocha e o prefeito Erlanio Xavier. A plateia não escondia a animação, porque o senador vinha anunciar o envio de recursos federais para a cidade. Em seu discurso, Pacheco foi direto ao ponto que interessava: “Imperatriz sofreu com o problema das chuvas, tendo muitos bairros castigados e que precisam ter o nosso apoio pelo Senado Federal, assim como a educação e a saúde do município. Muito mais que visitar e conhecer a cidade, viemos firmar esse compromisso com a população, no sentido de poder contribuir com realizações efetivas.” Foi aplaudido. Em um ano e quatro meses no comando do Senado, Pacheco pouco viajou para os estados.
A piauí perguntou a Pacheco por que o Maranhão ganhou tanta proeminência na distribuição dos recursos e quais outros estados que o senador visitou para fazer anúncios de investimento em saúde. Em nota, Pacheco disse o seguinte: “Os recursos destinados aos municípios levam em conta critérios definidos pelas bancadas dos respectivos estados. Na visita que fiz a Imperatriz, acompanhado pelos senadores maranhenses Weverton e Roberto Rocha, presenciei a necessidade e o compromisso feito de 7,5 milhões de reais para obras em comunidades carentes do município. Sobre os demais recursos, não tenho informações.”
Chama a atenção que a drenagem de verba do orçamento secreto tenha se concentrado no Maranhão porque a bancada do estado não tem peso político expressivo no Congresso, nem se sabe que “critérios técnicos” excepcionais os parlamentares maranhenses descobriram para atrair tanto dinheiro. O Maranhão é o destino dos maiores valores do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Municipais de Saúde, destinados ao custeio de atenção básica e do MAC, mas é também o campeão nacional de repasses de emendas do orçamento secreto em todas as áreas. Aqueles 918 milhões de reais em saúde que o Maranhão atraiu até agora são um feito e tanto. Deixa o estado atrás apenas de Minas Gerais, a unidade da federação com o maior número de municípios no país e na qual o senador Rodrigo Pacheco fez sua carreira política.
O volume e o método maranhenses sugerem a existência de uma coordenação central, uma organização voltada para administrar a operação. Quem entende do riscado em Brasília diz que a escolha do Maranhão faz sentido como disfarce porque o estado vinha sendo governado por um político de esquerda – Flávio Dino, que deixou o governo em março e trocou recentemente o PCdoB pelo PSB. “O Maranhão não é um estado que está no radar da fiscalização da imprensa no geral”, diz o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), autor de um requerimento de abertura de impeachment por causa do orçamento secreto que, até hoje, reuniu só 78 assinaturas. Segundo ele, chamaria mais a atenção se o esquema bombasse em Alagoas ou no Piauí. Arthur Lira, que neste ano controla 11 bilhões de reais do orçamento secreto, é de Alagoas. O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, o senador licenciado que funciona como posto avançado do orçamento secreto no Palácio do Planalto, é do Piauí.
O elemento central do orçamento secreto é, justamente, o segredo, um aspecto que reforça o poder de Lira. O deputado poderia ter divulgado todas as autorias de emendas em novembro do ano passado, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu os repasses até que tudo fosse divulgado. Como a penumbra amplia sua margem de manobra, Lira relutou muito até aceitar dar publicidade de uma parte das emendas. Aproveitou para fazer propaganda. “Hoje em dia, todas as emendas são cadastradas em um site público. Se isso é secreto, não sei então o que é aberto”, disse, em abril passado, ao jornal O Globo.
Informada de que a suspensão das emendas poderia ter efeito catastrófico para os municípios – sobretudo, na área da saúde e educação –, a ministra Rosa Weber, juíza do caso, voltou a liberar as emendas em dezembro passado, sob o compromisso de que o Congresso adotaria mais transparência. Na época, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, pediu que o tribunal presumisse a boa-fé dos parlamentares. Em abril, na mesma entrevista ao Globo, Lira prometeu: “As informações serão fornecidas ao Supremo.” Mas, até hoje, nem a boa-fé de Pacheco nem a promessa de Lira saíram do papel. No Brasil inteiro, a identidade dos parlamentares que distribuíram 27 bilhões de reais segue desconhecida, oculta atrás da alcunha “usuários externos”. Nem a boa-fé da ministra Rosa Weber sabe quem são.
Se depender de Lira, ficará pior. Diante das pesquisas mostrando uma liderança consistente de Luiz Inácio Lula da Silva na corrida presidencial, o deputado já começou a se movimentar para não perder o controle do orçamento secreto em 2023, no caso de uma vitória petista. Hoje, o relator-geral do orçamento é a única figura com poder para determinar quais parlamentares farão emendas na fatia secreta do orçamento – as chamadas de rp9, no jargão da burocracia parlamentar. Agora, Lira está correndo para incluir outros dois nomes no processo de decisão: o presidente da Comissão Mista de Orçamento (CMO) e o relator da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Os titulares desses cargos são, respectivamente, o deputado federal Celso Sabino (União-PA) e o senador Marcos do Val (Podemos-ES). Os dois são do Centrão. Os dois apoiam Bolsonaro. Em um parecer, Do Val propôs uma agravante: quer que as emendas do orçamento secreto se tornem impositivas. Ou seja: o governo, que hoje pode bloquear o pagamento para reequilibrar seu caixa, ficará obrigado a pagá-las.
O senador Weverton Rocha, indagado sobre a relevância do seu estado nas emendas, festejou: “Fico feliz de saber que houve aumento de repasses para o Maranhão, e acho que isso reflete um trabalho bem-feito de todos os parlamentares em busca de recursos para o nosso estado que é muito pobre e precisa muito.” Informado sobre os números exorbitantes de atendimentos nos municípios, voltou a festejar – “se houve aumento de procedimentos também considero isso um dado positivo” – e eximiu-se: “Quem determina o teto do que cada município recebe é o Ministério da Saúde, que também é o responsável por fazer as aferições e validações do valor pago mensalmente.”
Procurado pela piauí, o deputado Arthur Lira não respondeu.
A existência da “volta” – o nome da propina do orçamento secreto – ganhou consistência pública no dia 11 de março passado, quando a Polícia Federal fez uma operação de busca e apreensão em três endereços de deputados do PL, o partido de Bolsonaro. Um deles era do deputado Josimar Maranhãozinho, aquele do bando armado que extorque prefeitos. Para obter a autorização do Supremo Tribunal Federal para a operação, o delegado Roberto Santos Costa descreveu o que investigava: uma “verdadeira organização criminosa voltada para a compra de emendas parlamentares destinadas às ações de saúde dos municípios maranhenses”.
As suspeitas foram reforçadas em uma operação anterior, na qual os policiais acharam uma anotação manuscrita com indícios de que o deputado Bosco Costa, do PL de Sergipe, enviara 4,1 milhões de reais para a Prefeitura de São José de Ribamar e, em troca, cobrou propina de 25% sobre o total – pouco mais de 1 milhão de reais. A polícia localizara trocas de mensagens de WhatsApp em que Maranhãozinho pede a Costa seus dados bancários para fazer o depósito. Costa envia os dados da conta de sua mulher e, depois, Maranhãozinho manda o comprovante de um depósito de 40 mil reais. A polícia estranhou que um deputado de Sergipe estivesse mandando dinheiro para o Maranhão.
As investigações também encontraram suspeitas de que coube ao empresário Josival Cavalcante da Silva, conhecido como Pacovan, a tarefa de bater na porta da Prefeitura de São José de Ribamar para cobrar a propina. Outro investigado é o comerciante João Batista Magalhães, cuja presença no caso remete às esferas mais altas do Congresso. Na época das mensagens e do depósito, Magalhães ocupava o cargo de assessor do líder do governo no Congresso, o senador Eduardo Gomes (PL), que, apesar de ser do Tocantins, mandou 30 milhões de reais para a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), no Maranhão. Indagado sobre a razão do depósito em sua conta, o deputado Bosco Costa acionou seu advogado. “Isso será apresentado no momento oportuno”, disse o advogado Mário Magalhães. Maranhãozinho não respondeu as mensagens da piauí.
Na operação policial de março passado, os agentes encontraram 200 mil reais em dinheiro vivo na residência de João Batista Magalhães. Os achados reforçaram a convicção inicial do delegado Santos Costa, expressa ao STF: “Esse estado [refere-se ao Maranhão] pode ter se tornado um ‘paraíso’ para o desvio de emendas parlamentares.” O mais notável, porém, é que, para entender o enredo, a própria polícia teve dificuldades por uma razão: o orçamento secreto é secreto. A PF escreveu: “Apesar de aparentemente estarmos diante de emendas provenientes de um orçamento secreto, à luz da impossibilidade de delimitação da autoria até mesmo em consulta in loco aos sistemas do Ministério da Saúde […], conversas encontradas no celular do deputado federal Josimar Maranhãozinho [tornaram] possível desvendar quem são os autores das emendas investigadas.”
O prefeito Arquimedes Bacelar (PDT), de Afonso Cunha, cidade de 6,6 mil habitantes, se incomoda com a presença de repórteres. Assim que soube que a piauí estava na cidade para avaliar as ações na área da saúde, disse pelo telefone celular que não queria falar nada e perguntou qual “adversário político” estava por trás da visita. Mas sua irmã, Analídia Bacelar, titular da Secretaria de Saúde, fez questão de contar como o município conseguiu 4,7 milhões de reais em 2021. “É garimpar, como a gente chama. É garimpar recursos. É buscar e ir pegar. É como se fosse buscar ouro. É fazer uma busca mesmo. Na hora certa, o orçamento abre”, disse. Quem faz esse trabalho, segundo ela, é o seu irmão. “Ele sabe o caminho das pedras.”
Afonso Cunha informou ao SUS que fez 221,4 mil consultas com especialistas em 2020 – 33 por habitante. É uma centena de vezes mais do que o registrado no ano anterior. (Em 2021, subiu ainda mais: 356 mil consultas, chegando a uma média espetacular de 54 por habitante.) Também informou que fez exatamente 11 391 ultrassonografias transvaginais, um exame preventivo que costuma ser feito anualmente. Dá seis exames transvaginais por ano para cada mulher com 15 anos ou mais. E informou ter feito exatamente 11 391 ultrassonografias de próstata via abdominal no ano – média de dezessete para cada homem com 40 anos ou mais. Em 2021, a prefeitura deu um número ainda maior e – mais uma vez – idêntico para os dois procedimentos: 18 474 transvaginais e 18 474 exames de próstata.
Segundo a secretária de Saúde, o esforço de “garimpar” emendas ultrapassa os limites do Maranhão. Afonso Cunha, diz ela, recebeu recursos enviados até por uma deputada do Pará. “Não lembro o nome dela, mas é do Pará.” Ela exibe a Unidade Básica de Saúde, que acabou de passar por uma reforma. A secretária está acompanhada por um rapaz que se apresentou como secretário de Obras, encarregado de fotografar e filmar todos os movimentos da reportagem. Ela é expansiva e parece à vontade para falar. Mostra a sala de trabalho onde a equipe da prefeitura preenche os dados de procedimentos e envia para o SUS. “Aqui é o coração”, anuncia. A certa altura, não se inibe de revelar que as consultas médicas são prestadas por profissionais vinculados ao governo do estado – o que, naturalmente, não deveria constar nos dados informados ao SUS como serviço oferecido pela prefeitura. É mais um indício de que os dados levados ao SUS não são regulares.
Nas catorze cidades maranhenses que a piauí visitou, todas com um histórico de exames e consultas inexistentes para atrair milhões de reais, são poucos os sinais de progresso no sistema de saúde. Às vezes, um posto de saúde passou por uma reforma, como aconteceu em Afonso Cunha. Ou um centro de especialidades médicas foi inaugurado, como em Paulo Ramos. Ou a prefeitura passou a realizar tomografias, como em Igarapé Grande. Mas o grosso do dinheiro está em algum outro lugar.
Em Bacabal, que recebeu 22,4 milhões do orçamento secreto desde o ano passado para atendimentos do MAC, a empresária Maria do Carmo Xavier tem uma pequena confecção, que vem atraindo o interesse da região. Ela já fechou contrato com dez cidades das redondezas, num total de 15 milhões de reais, segundo registros do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão (TCE-MA). Sua empresa, no entanto, não parece ter tanto sucesso. A piauí visitou a confecção. Xavier estava trabalhando em pleno domingo e mostrou as modestas instalações. “Para o senhor ver, não é nada projetado, porque fui fazendo de pouco”, disse ela.
Xavier explica que chegou aonde está com sacrifício. “Porque nunca tive condição. Nunca tive 1 milhão de reais.” Mas nem agora, que está atraindo tantos contratos? “Eu me aperto para fazer meus pagamentos. Por isso que meu marido é triste. O senhor não tem ideia… Ultimamente eu vivo fazendo empréstimo. Já fiz quatro. Graças a Deus ainda tenho crédito.” Os contratos de Xavier saíram por meio de licitações, mas ela não sabe como se dá a participação de sua confecção. “Como não entendo de licitação, toda vez que eu ia, eu perdia. Aí, um dia, o Jefferson chegou e conversou comigo.” Jefferson – cujo sobrenome ela não lembra – passou a ser o encarregado das licitações.
Somente a Secretaria de Saúde de Bacabal fez contratos de 4,6 milhões com a confecção de Xavier para compra de uniformes, camisetas, lençóis e bonés, entre outros serviços de malharia. Na cidade vizinha de Paulo Ramos, o reduto eleitoral do deputado federal André Fufuca, presidente nacional do Progressistas, a confecção tem contrato de perto de 1 milhão para fornecer artigos de malharia. Mas Xavier diz que nunca viu tanto dinheiro assim. O microempresário Josimar de Oliveira também tem contrato com a Prefeitura de Paulo Ramos, de acordo com dados do TCE. Pelo contrato, de 386 mil reais, Oliveira fornece “peças, acessórios e derivados” para a frota de veículos da Secretaria de Saúde. O endereço oficial da empresa é a residência de sua mãe. Quando recebeu a piauí, ela telefonou para o filho para que ele falasse com a revista. Travamos o seguinte diálogo:
– O senhor tem uma empresa de peças e acessórios de carros?
– Tenho.
– O senhor tem algum contrato com a Prefeitura de Bacabal?
– Não tenho, não. Tenho contrato nenhum, não.
– E na região, nos municípios próximos? Paulo Ramos, por exemplo?
– Não. Tenho, não.
– O senhor nunca foi fornecedor da prefeitura?
– Não. Participei de uma licitação, mas não ganhei, não.
– Quando foi isso?
– Faz dias já. Agora, vá logo ao assunto… Que história é essa, que está muito mal contada, aí?
A suspeita de desvio de dinheiro na saúde já vem produzindo algumas batidas da Polícia Federal. Em abril passado, agentes federais miraram na Droga Rocha, uma fornecedora de insumos hospitalares e medicamentos sediada em Teresina, suspeita de desviar 8,5 milhões de reais da Prefeitura de Santa Inês, no nordeste do Maranhão. A polícia investiga a hipótese de que a Droga Rocha pagou propina ao prefeito de Santa Inês, conhecido como Felipe dos Pneus (Republicanos). Os investigadores descobriram que, entre agosto e novembro do ano passado, o prefeito recebeu 761 mil reais em depósitos feitos por uma empresa criada dois meses antes. Felipe dos Pneus chegou a ser afastado do cargo, mas já voltou.
Nos últimos anos, a Droga Rocha assinou contratos com mais de cinquenta prefeituras maranhenses, incluindo algumas que entraram no circuito de inflar consultas e exames. Uma delas é a Prefeitura de Coelho Neto, cujos atendimentos MAC subiram 573% de 2020 para 2021. Antes disso, em 2019, Coelho Neto assinou contrato de 5,9 milhões de reais com a Droga Rocha para fornecimento de medicamentos e material médico-hospitalar e odontológico. Miranda do Norte, cujos atendimentos saltaram quase 1.100% de um ano para o outro, também tem contrato com a Droga Rocha. São 2,2 milhões de reais para fornecer remédios.
A Polícia Federal também investiga a Dimensão, uma distribuidora de medicamentos, sob suspeita de desvios na saúde. De 2020 em diante, a Dimensão fez contrato com 97 prefeituras do Maranhão, incluindo as do esquema de consultas e exames inexistentes. Com Igarapé Grande, são contratos de 3,1 milhões de reais. Com Bela Vista, 1,3 milhão. Com Bernardo do Mearim, 780 mil. Santa Quitéria, 240 mil. Em Bom Jardim, a Dimensão, ao lado de outra empresa, a Distrimed Comércio e Representações, ganhou uma licitação de 11 milhões de reais na área da saúde. O então prefeito da cidade, Francisco Alves de Araújo (PSC), chegou a ser afastado do cargo pelo Tribunal de Justiça por irregularidades nessa mesma licitação. (A Distrimed é velha no ramo: já foi alvo de operação da Polícia Federal por desvio de recursos do SUS em 2012. Nos últimos três anos, fez contratos que somam 31,9 milhões de reais com trinta prefeituras maranhenses.)
A Dimensão, entretanto, é um caso à parte. Seu proprietário é Jadyel Alencar, pré-candidato a deputado federal neste ano pelo Piauí. Em 2017, Alencar foi condenado a três anos e meio de reclusão por compra e venda de soro fisiológico roubado da Secretaria de Estado da Saúde do Piauí (Sesapi). Ele recorreu ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, mas o recurso ainda não foi julgado. Sua mulher, Taciane Torres, também faz sucesso com as prefeituras do Maranhão. Dona da Odonto Shop, ela tem contratos de pelo menos 24 milhões de reais com dezoito municípios maranhenses. Apesar do seu envolvimento com a Polícia Federal, Alencar é prestigiado. O ministro Ciro Nogueira, da Casa Civil, postou uma foto ao lado de Alencar no Instagram. Na imagem, os dois estão abraçados, sorrindo.
Até hoje, o Ministério da Saúde, mesmo recebendo um cartapácio de números inflados de dezenas de cidades do Maranhão, não deu um alarme de fraude. “Isso mostra que o Ministério da Saúde está desestruturado na área de controle para impedir que problemas graves como esses aconteçam”, diz Francisco Funcia, vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde. A aplicação dos recursos do SUS é fiscalizada por funcionários do Departamento Nacional de Auditoria (DenaSUS), que tem representantes em todos os estados e no Distrito Federal. Até 2017, o DenaSUS realizava em torno de 1,3 mil auditorias e atividades de controle por ano. Mas, de lá para cá, o número desabou. Em 2019, foram apenas 351. Em 2020, só 208. No ano passado, 151.
Num sinal de como as coisas estão escancaradas, o SUS recebe – e aprova – números que as prefeituras não se arriscam a apresentar para o Tribunal de Contas do Estado do Maranhão. O município de Paulo Ramos, por exemplo, registrou no SUS gastos de 6,8 milhões de reais em 2020 com atendimentos do MAC. No balanço que enviou ao TCE-MA, no entanto, os valores não chegam a 1,4 milhão. Bela Vista informou ao SUS um gasto de 5,7 milhões no ano passado. No TCE-MA, anotou só 1,3 milhão. O município de Governador Luiz Rocha foi mais longe. Informou ao SUS uma despesa em atendimentos ambulatoriais do MAC da ordem de 2 milhões de reais, mas não apresentou nenhum gasto para o tribunal. (Ainda assim, agora em junho, o orçamento secreto premiou Governador Luiz Rocha com nova bolada de 2 milhões.)
O governo do estado do Maranhão diz que fica de mãos atadas. “A Secretaria de Saúde só pode tomar a iniciativa de fiscalizar recursos estaduais”, diz o ex-secretário de Saúde, Carlos Lula, que deixou o cargo em abril e hoje é pré-candidato a deputado estadual pelo PSB. “O que é recurso federal eu só posso fiscalizar a partir da solicitação do próprio Ministério da Saúde.” Diante dos valores despachados para os municípios do Maranhão, Carlos Lula recomenda uma providência. “É urgente colocar uma lupa na destinação desses recursos”, diz ele, que não gosta da ideia de ver parlamentares distribuindo recursos da saúde. “Uma hora um parlamentar vai colocar um tomógrafo e a cidade não tem condições de manter o maquinário. Esse tipo de coisa leva ao desperdício porque o interesse do parlamentar é prover saúde para sua base eleitoral, mas a lógica do SUS não é municipal, é regional.”
Informado sobre os dados levantados pela piauí, o deputado federal Jorge Solla (PT-BA) ficou espantado. “Eles mostram a destruição completa dos arranjos de financiamento do SUS”, disse. “Hoje nós temos duas categorias no SUS. De um lado, as instituições, municípios, estados e hospitais que têm padrinhos parlamentares ligados ao governo Bolsonaro e, de outro, os que não têm padrinhos ou que os padrinhos não são da base do governo. Daí esses extremos absurdos.” Solla foi secretário de Saúde em Vitória da Conquista, depois secretário de Atenção Especializada à Saúde do Ministério da Saúde e, por fim, secretário estadual da Saúde do governo da Bahia. “É importante identificar quais são os interesses de quem faz essa mobilização de recursos. Obviamente, esses interesses devem estar alinhados com aqueles que dominam a chave do cofre do orçamento secreto.”
Enquanto os controles internos do SUS não funcionam, os parlamentares, além de fazerem a farra de recursos, estão tentando intimidar o Tribunal de Contas da União, em Brasília. Chegaram a aprovar um requerimento no qual pediam que a corte de contas não suspendesse obras ou serviços sob suspeita de desvio de dinheiro. Quem liderou a iniciativa foi Celso Sabino, o presidente da Comissão Mista Orçamentária e homem de confiança de Arthur Lira. O requerimento é claramente inconstitucional – porque pede ao tribunal que não cumpra sua função constitucional – mas tem o efeito de constranger a atuação dos fiscais do TCU.
“A iniciativa é preocupante”, diz um ministro do tribunal, que pediu o anonimato porque não quer provocar a hostilidade dos parlamentares. “É tipo assim: ‘A gente não quer que paralise a obra mesmo com dano ao erário.’ Aí é muito perigoso.” Os técnicos do TCU interpretam que a ideia dos parlamentares é apenas manter funcionando um sumidouro de recursos, e não concluir a obra. “Em geral, uma obra com irregularidade grave a ponto de justificar a paralisação vai ser, mais cedo ou mais tarde, paralisada”, diz o subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado, que atua junto ao TCU. “Na prática, é tentar evitar o inevitável.”
A piauí procurou o Ministério da Saúde para saber por que os valores exorbitantes estavam sendo aprovados, se havia falha na fiscalização do DenaSUS e as razões da queda brusca nas auditorias. A revista também pediu uma avaliação a respeito do impacto que as irregularidades estavam tendo sobre o SUS. Em um e-mail, o Ministério tratou de outros temas: explicou o que são os recursos MAC, como as verbas são transferidas e como são definidos os limites. E completou: “Em 2021, durante um levantamento por amostragem da produção de serviços ambulatoriais […] foram identificados alguns municípios com crescimento excessivo no registro de dados relativos à assistência ambulatorial, em um determinado período. As informações coletadas são avaliadas pela Auditoria-Geral do SUS para realização de auditoria.” A piauí apurou que nenhuma auditoria foi aberta até agora e voltou a acionar o Ministério. Dois dias depois, a assessoria mandou uma nova nota dizendo que “o processo para auditoria sobre os dados dos municípios em questão será iniciado nos próximos dias”.
A farra maranhense patrocinada pelo orçamento secreto está ajudando a deformar o Sistema Único de Saúde, essa joia brasileira, criada na Constituição de 1988, sem a qual a pandemia de Covid no Brasil teria sido uma tragédia de dimensões ainda maiores do que foi. As verbas do SUS são definidas por gestores de saúde nos três níveis – municipal, estadual e federal – e levam em conta fatores demográficos, epidemiológicos e a capacidade instalada de cada cidade. Desse modo, cria-se um equilíbrio entre os quase 6 mil municípios brasileiros, evitando que uns recebam mais – ou menos – do que são capazes de administrar e gastar. A folia promovida pelos parlamentares desorganiza a distribuição dos recursos, sem falar das suspeitas de que parte das verbas acaba em bolsos privados.
Tanto que em 2020, no primeiro ano da pandemia, a maior emergência sanitária dos últimos cem anos, a saúde ficou com apenas 20% dos repasses do orçamento secreto. No ano seguinte, quando o Brasil passou pela fase mais dura da Covid, a saúde chegou a 46% das verbas. Mas só agora, já no período do pós-pandemia, quando a vacinação em massa reduziu enormemente as mortes e as emergências, o setor de saúde chegou a 90% das verbas.
O caso de Bela Vista do Maranhão, a cidade em que os pais de Elisângela carecem de cuidados médicos, é exemplo da desorganização eleitoreira. Em 2020, o SUS despachou 20 mil reais para a cidade, considerando seus critérios técnicos, os acordos com os gestores municipais e estaduais e, claro, seus limites orçamentários. Em Brasília, os deputados e senadores, recorrendo a dados-fantasmas, fizeram emendas no orçamento secreto e despacharam 5,5 milhões de reais para a cidade em 2021. É um aumento de mais de 27.400% em relação ao remetido pelo SUS. Dinheiro à farta pode ser bem-vindo em qualquer sistema de saúde do Brasil, mas, mesmo na fartura, os critérios precisam ser técnicos. Uma diferença de 27.000% estoura qualquer planejamento. E, pior, a quantia não tem feito diferença significativa na saúde de Bela Vista, como mostra a situação da família de Elisângela.
Em 2021, Bernardo do Mearim, a cidade que logo seguiu o exemplo da pioneira Igarapé Grande, recebeu 10.000% a mais de recursos do que o enviado pelo SUS. Serrano do Maranhão, no noroeste do estado, sequer estava habilitada a receber repasses do MAC até 2020. No ano seguinte, a cidade entrou na lista do SUS e, na época, foi contemplada com uma verba modesta, de 10,8 mil reais. Mas, no mesmo ano, o orçamento secreto mandou mais 2,8 milhões de reais, ou 26.000% mais do que a verba técnica do SUS.
A folia promovida pelos parlamentares não está ampliando o bolo de verbas existentes para a saúde. O bolo continua do mesmo tamanho. O que os parlamentares estão fazendo é redistribuir as fatias – e o fazem para premiar aliados ou, suspeita-se, para encher os bolsos de alguém. Em 2014, eles distribuíam 3% das verbas em saúde. Hoje, são 11%. “O crescimento das emendas na saúde está penalizando aquilo que é objeto de planejamento”, reclama Funcia, o consultor do Conselho Nacional de Saúde, fazendo eco à avaliação de Carlos Lula, o ex-secretário de Saúde do Maranhão. “As emendas comem os recursos que deveriam ir para ações coordenadas, definidas por gestores de saúde, e são usados para bancar interesses específicos dos parlamentares.”
Há evidências, inclusive, de que o dinheiro da saúde pode estar sendo usado em outras áreas. A piauí teve acesso a dados mostrando que, entre dezembro do ano passado e março deste ano, a cidade de Afonso Cunha, aquela cujo prefeito sabe o “caminho das pedras”, transferiu 492 mil reais da conta de custeio do SUS para uma conta geral da prefeitura. Um decreto presidencial, baixado em 2011, proibiu esse tipo de transferência porque, uma vez depositado na conta geral, o dinheiro pode ser usado para qualquer outro fim que não o atendimento em saúde da população. Também há suspeitas de que algumas prefeituras estão fazendo outra operação não prevista em lei: usando recursos do SUS para pagar aposentadorias.
Marajá do Sena, a quarta cidade mais pobre do país, é um exemplo da deformação a que o SUS está sendo submetido. O acesso à cidade é por 23 km de estrada de terra, cheia de ladeiras. A cidade não tem hospital e conta apenas com cinco Unidades Básicas de Saúde. É comum que seus moradores recorram aos serviços de saúde das cidades vizinhas. Em fevereiro, a lavradora Antonia Cleude Silva Lima, de 45 anos, levou até o posto sua neta de 8 meses, que tinha febre e dores de barriga e garganta. Passou a madrugada de sábado esperando que a dipirona fizesse efeito. “De manhã, eu já peguei um carro mesmo, um pau de arara, e fui para Paulo Ramos com ela”, afirma.
Dois anos antes, ela conta que foi obrigada a fazer o mesmo com seu pai. “De repente, ele começou a baldear sangue. A gente correu, levou para o posto. Deram dois comprimidos para ele botar debaixo da língua, mas depois de duas horas ele estava do mesmo jeito.” Silva Lima então o levou para a cidade vizinha, Lago da Pedra. Seu pai tivera um infarto e estava com hemorragia. Gastou 7 mil reais com atendimento particular, custo que seu irmão conseguiu bancar. O pai sobreviveu. “Podia ter sido tudo no SUS, mas não foi. Porque o SUS aqui para nós é diferente. É muito diferente”, diz. Apesar de tudo, somando-se todos os repasses desde o começo do orçamento secreto, Marajá do Sena só recebeu 863 mil.
A cidade de Santa Quitéria do Maranhão, aquela que inflacionou tanto os números que passou São Paulo em exames do vírus HIV, conseguiu o que queria em 2021: recebeu o teto de 4,6 milhões de reais. O inusitado é que, em vez de promover uma virada na saúde, os serviços médicos desabaram. Em vez dos 847 mil procedimentos do ano anterior – o número que serviu para explodir o teto –, os atendimentos caíram para 136 mil. As consultas com especialistas diminuíram sete vezes. Os atendimentos de urgência caíram 3,5 vezes. Com tanta redução, o gasto do município caiu para 887 mil reais, um quinto do ano anterior.
A lavradora Carlete Silva, de 23 anos, sentiu o descalabro da pior forma possível. Ela deu à luz às três da madrugada do dia 25 de maio. Gael nasceu com 2,8 kg no Hospital e Maternidade Municipal Dr. Zeca Moreira, o único de Santa Quitéria. Mas, logo depois do parto, o bebê apresentou sinais de desconforto respiratório. “Ele todo roxo. Eu falei para a enfermeira: isso não está normal, não”, conta Sara Silva, avó de Gael. No hospital, não havia pediatra, nem incubadora, nem UTI. Depois de oito horas sem conseguir estabilizar o recém-nascido, a equipe do hospital decidiu transferi-lo, mas não havia ambulância com UTI móvel e, para piorar a carência, o hospital regional, localizado na cidade vizinha de Chapadinha, tampouco tinha UTI neonatal.
Gael morreu enquanto era transportado para um hospital em Parnaíba, já no estado do Piauí, a cerca de 140 km de Santa Quitéria. Francisco Edson, o pai, acredita que faltou assistência médica e até hoje não se conforma com a demora do hospital em transferir seu filho para um lugar com mais recursos. Carlete quase culpa a si mesma. “Se eu tivesse tido ele em outro lugar, com UTI, essas coisas, talvez ele tivesse sobrevivido.” A Secretaria Municipal de Saúde, com o caixa supostamente abarrotado de dinheiro com a queda abrupta dos atendimentos, comprou uma incubadora dias depois da morte de Gael. Uma incubadora custa menos de 40 mil reais.
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Nota 1: Depois da publicação da reportagem, a secretária de Saúde de Afonso Cunha, Analídia Bacelar, enviou uma carta em que confirmou os números fictícios apontados pela piauí, mas responsabilizou o Departamento de Informática do SUS. “O município de Afonso Cunha nunca produziu essa quantidade de procedimentos. Essa quantidade de procedimentos decorre de algum erro no sistema do Datasus. Inclusive o Ministério da Saúde tem constantemente informado a ocorrência de inconsistências desse jaez”, escreveu. Bacelar não explicou por que Afonso Cunha recebeu uma verba de 7,8 milhões de reais entre 2021 e 2022, um valor que se baseia nos números fictícios de procedimentos. Sem esses procedimentos, em vez de 7,8 milhões, o teto da cidade cairia para 849 mil reais por ano.
Nota 2: Depois da publicação da reportagem, o secretário de Saúde de Pedreiras, Marcílio Ximenes, informou que o município realizou apenas 54 exodontias no mês de setembro de 2021 e atribui o número exorbitante informado ao SUS a um “erro de digitação”. Segundo ele, em vez de “54”, digitou-se “540 301”. Segundo Ximenes, a quantidade de exodontias realizadas não altera a verba enviada para o serviço de Centro de Especialidades Odontológicas, que é de 11.000 reais. Em 2022, o erro de digitação voltou a acontecer. “Onde deveria ter sido digitado 22, por um erro humano fora digitado 220.433”, disse Ximenes. O secretário informou que tomou “medidas administrativas” para evitar a repetição dos erros no futuro.
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